Notícias setorial/mercado

Para ganhar a "guerra do pão", Maduro quer tomar conta das padarias

A nacionalização é uma receita que o Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, não hesita em prescrever para resolver problemas (crónicos ou pontuais) em sectores críticos da economia. Assim se explica que, além das grandes empresas estatais que dominam a indústria petrolífera, a produção de aço ou o agronegócio, o Governo de Caracas detenha o controlo sobre mais de 500 empresas que operam negócios que vão das farmácias aos telemóveis e às bicicletas. A este variado portfolio podem ser acrescentadas, em breve, as padarias: o regime acaba de impor novas regras para a produção de pão e os estabelecimentos que não as cumprirem serão ocupados pelo Governo, informou o vice-presidente Tareck El Aissami.

PUB

Um estudo da organização anti-corrupção Transparência Internacional diz que 70% das empresas controladas pelo Estado venezuelano são altamente deficitárias e estão a operar com perdas significativas. Os números relativos à actividade de 2016 apontam para um prejuízo de cerca de 121 mil milhões de euros (1,29 milhões de milhões de bolívares) para os cofres públicos. Este valor, disse ao Miami Herald a directora do gabinete da organização na Venezuela, Mercedes de Freitas, ultrapassa o montante da despesa dos ministérios da Educação, Saúde, Habituação e Segurança Social para o mesmo ano.

A Transparência Internacional vai lançar, em Abril, um relatório sobre a dimensão e sustentabilidade da economia estatal venezuelana. "Constatámos que ninguém sabia quantas empresas estão a ser geridas pelo Estado", explicou Mercedes de Freitas. "O Estado invadiu todos os sectores imagináveis", diz. E a gestão pública dessas empresas está a ser feita de forma totalmente opaca, concluíram: não são divulgados balanços de actividade nem se conhecem os seus administradores, por exemplo. "E quando se pede essa informação, não é fornecida. Aliás, uma pessoa arrisca-se a ser classificada como inimiga do Estado simplesmente por fazer esse pedido", observou.
 

A ameaça de expropriação paira sobre os fabricantes de pão desde o fim-de-semana. A população já se habituou a encontrar avisos de que "no hay pan" colados na porta das padarias, mas o Presidente perdeu a paciência com as longas filas e as queixas dos venezuelanos. "Os especuladores que querem esconder o pão do povo vão conhecer a força da lei. Andaram a fazer uma guerra do pão e agora vão pagar caro - e não vale a pena virem queixar-se de perseguição política", bradou Nicolás Maduro, depois de dar a conhecer as novas medidas do seu Governo para corrigir a situação.

Não há farinha

A federação da indústria da panificação Fevipan garante que a falta de pão se deve à crise do abastecimento de trigo (que é importado). Mas o Governo alega que a escassez resulta da acção concertada do sector, que estará intencionalmente a levar a cabo uma "guerra" para desgastar o regime. Os padeiros prometem que não há guerra nenhuma, e dizem-se tão ou mais prejudicados do que o resto da população. "Nós somos os maiores aliados do consumidor e estamos focados na produção de pão, apesar da falta de matéria-prima e do controlo dos preços", garantiu a Fevipan no Twitter. "Actualmente, 80% das padarias têm o inventário de farinha a zero, e os restantes 20% só receberam 10% do consumo mensal", informou.

O Governo é responsável pelo stock de farinha de trigo: como o país não produz o cereal, este tem de ser importado (a importação de matérias-primas é um monopólio do Estado) para depois ser moído e distribuído pelas panificadoras. As novas regras estipulam que cada padaria fica obrigada a destinar 90% da sua farinha à produção de pão, e os restantes 10% a podem ser usados em pastelaria e bolos. Uma das acusações do Presidente Maduro é que os padeiros fazem "guerra" produzindo mais croissants e bolos do que pães, porque o lucro da venda dos primeiros é superior ao dos segundos (que, de resto, como bem essencial, tem o preço controlado pelo Estado).

Além disso, as padarias estão agora obrigadas a assegurar o "fornecimento constante" de pão das 7h às 19h da tarde, e a garantir que há pão para o dia seguinte. Assim que o regulamento entrou em vigor, começaram as inspecções das 709 unidades existentes em Caracas, a cargo da recém-criada Superintendência Nacional para a Defesa dos Direitos Socioeconómicos da Venezuela: o desrespeito das normas implicará a ocupação pelo Estado.

Num derradeiro esforço, a Fevipan pediu ao Governo para dialogar antes de começar as expropriações. "O nosso único objectivo sempre foi colaborar com o abastecimento do produto para dar respostas à comunidade", insistiu. "Aprocura de pão disparou consideravelmente perante a falta de outros alimentos de primeira necessidade".

Ultimato da OEA

A Venezuela vive uma aguda crise de escassez, e a situação é de tal maneira grave que a Assembleia Nacional, que é dominada pela oposição, aprovou uma nova declaração do estado de emergência alimentar. Já em Fevereiro tinha adoptado essa medida, e solicitado a ajuda das organizações internacionais para enfrentar a fome no país.

Para o presidente da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, a situação cada vez mais grave exige uma resposta firme: ou a Venezuela realiza novas eleições ou será suspenso. "A corrupção é generalizada e a economia está em queda livre. A crise humanitária é de uma escala inaudita no hemisfério ocidental. E os direitos cívicos e políticos são ignorados para preservar a riqueza, o privilégio e a impunidade dos que se aferroaram ao poder", denunciou. A Venezuela está a violar todos os princípios da Carta Democrática que rege a OEA, concluiu.

No debate parlamentar em que foi aprovada a declaração do estado de emergência alimentar (ao qual faltou toda a bancada do Partido Socialista Unido da Venezuela, do Presidente Maduro), o deputado Carlos Paparoni sublinhou que 80% da população vive com fome, e cerca de três milhões de venezuelanos têm de vasculhar o lixo à procura de restos de alimentos para sobreviver. A "banalização" desse quadro inspirou, até, as mais recentes acções de protesto anti-governamentais: segundo a Reuters, uma dúzia de activistas atirou sacos de lixos para a entrada do Ministério da Alimentação, enquanto gritavam "as pessoas têm fome" e "Democracia", sob a guarda da polícia de choque.

Essas pequenas acções, com poucos manifestantes e de curta duração, têm-se repetido desde o princípio do ano. Os seus organizadores sabem que o seu efeito político é nulo, dizem à Reuters, mas congratulam-se com o efeito de irritação. Atendendo ao falhanço das grandes mobilizações do ano passado para fazer avançar um referendo para a destituição do Presidente, as novas e mais criativas formas de luta servem, sobretudo, para moralizar a oposição. "Temos de parar com os comícios e marchas tradicionais, e recorrer ao factor surpresa para que o Governo perceba que tem de respeitar a Constituição", concorda o governador do estado de Miranda, Henrique Capriles, o grande rival político de Maduro.

Fonte: Público


COMPARTILHE: